Finanças-Islâmicas-FECAP Bancos que não cobram juros?

Brasil começa a discutir Marco Legal das Finanças Islâmicas

O Brasil iniciou as discussões sobre o Marco Legal das Finanças Islâmicas, através da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal. Agora, o assunto precisa avançar nas demais partes interessadas, como o Banco Central do Brasil (BCB) e Comissão de Valores Mobiliários (CVM), para que se criem as regras (legislativas e normativas) que abram as portas do Brasil para esse tipo de modalidade financeira. 

O marco é um conjunto de medidas que incluem alterações legislativas e nos órgãos reguladores (como o BCB e a CVM) para que possam recepcionar as instituições financeiras islâmicas no Brasil, isto é, para que possam operar livremente, como já ocorre no Reino Unido, onde, por exemplo, é permitido há algumas décadas que um Banco Islâmico opere livremente. 

Um conjunto de princípios diferencia singularmente as Finanças Islâmicas das finanças convencionais ou ocidentais, já que vai além das questões econômicas e financeiras puras, alcançando a sociedade e visando a seu bem-estar social. 

POSSIBILIDADES PARA O BRASIL

As Finanças Islâmicas têm despertado interesse do Ocidente desde a década de 1970, em função do seu forte crescimento anual (cerca de 12% ao ano), fruto da modernização dos sistemas bancários islâmicos a partir da segunda metade do século XX, que não deixaram de ser baseados em princípios estabelecidos no Alcorão há mais de 1.400 anos. 

Os bancos islâmicos administram mais de US$ 3 trilhões atualmente e, ao regulamentar a matéria por meio de um marco legal, parte desses investimentos poderia ser aplicado no Brasil, o que seria muito importante, em especial, nesse momento de crise. 

Segundo o coordenador do Instituto de Finanças da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP), Ahmed Sameeer El Khatib, que, além de ser muçulmano e filho de sírios, pesquisa o assunto desde 2006, o Brasil tem potencial para se tornar um eixo de atratividade importante na América Latina, uma vez que possui muitas empresas brasileiras que já operam em países islâmicos há muitos anos e também já possui bancos que mantêm operações de finanças islâmicas, mas não domesticamente, por falta de regulamentação. 

A seguir, ele comenta mais sobre o tema. 

MAS, O QUE SÃO AS FINANÇAS ISLÂMICAS?

Em primeiro lugar, cabe uma brevíssima explicação do que são, afinal, as Finanças Islâmicas. Embora não haja uma definição pacificada sobre o que são as Finanças Islâmicas, os principais teóricos internacionais no assunto concordam que elas podem ser definidas como o sistema financeiro em que todas as suas operações e as políticas são baseadas nas normas e regras da Lei Islâmica (conhecidas como Sharia) e refletem as injunções do Islamismo. 

Além disso, essas estruturas financeiras possuem um Conselho (Board) Sharia, que avalia as práticas de comércio e negócios de acordo com sua conformidade com os princípios religiosos. Ou seja, não se comercializa nada que não esteja em compliance com as regras da religião. 

Basicamente, essa modalidade de finanças baseia-se em dois pilares. 

O primeiro deles é a estrutura religiosa que se baseia em quatro princípios fundamentais. Esses princípios são: a proibição do pagamento ou recebimento de juros (riba), a proibição de envolvimento em atividades especulativas (gharar), a proibição de investimentos em quaisquer produtos que contradigam a Lei Islâmica (haram), como cassinos e jogos de azar (qimar) e, por último, obrigatoriedade de ajudar aos mais necessitados (zakat), que seria equivalente a um imposto religioso recolhido anualmente e com destinação certa aos mais pobres. 

Além do contexto religioso, o segundo pilar é baseado na conquista do desenvolvimento socioeconômico, justiça social e bem-estar entre as comunidades muçulmanas, por meio da mobilização de economias que são mantidas fora das instituições financeiras baseadas em juros. 

BANCO QUE NÃO COBRA JUROS?

A Lei Islâmica, conhecida como Sharia, proíbe a cobrança e o pagamento de juros, conhecido como riba, fato ímpar que já causa estranheza aos bancos ocidentais, à medida que um banco supostamente só geraria riqueza por meio dos juros cobrados de seus clientes. 

Os ganhos dos muçulmanos (praticantes do islamismo) devem vir de meios permitidos (lícitos), conhecidos como halal, e devem ser gastos em categorias de despesas islamicamente aceitáveis. Consequentemente, o Islã proíbe o investimento em empresas que são consideradas ilegais ou contrárias aos ensinamentos e valores islâmicos. 

Além disso, a distribuição da riqueza é considerada a principal preocupação na economia islâmica. A riqueza no Islã deve ser compartilhada, não se concentrar em poucas mãos (pessoas ricas). 

Para os muçulmanos, a preocupação com os outros, em particular os pobres e os necessitados, estão profundamente inscritos nos pilares do Islã. O islamismo, portanto, encoraja os muçulmanos a maximizar suas riquezas, desde que não criem uma situação de desequilíbrio social ou que violem as normas da justiça e moral islâmicas. 

Muitos dos produtos oferecidos pelas instituições financeiras islâmicas são comparáveis às finanças ocidentais ou convencionais, mesmo sendo proibidos juros e especulações. Os bancos são, de longe, os maiores atores das finanças islâmicas – alguns deles são exclusivamente islâmicos, oferecendo produtos compatíveis com a Sharia, outros são convencionais, sem interferência da religião. 

Além da ausência de taxas de juros, o conceito-chave das finanças islâmicas é o compartilhamento de riscos entre as partes em todas as operações. Esse compartilhamento é feito por um mecanismo conhecido como Profit and Loss Sharing (Compartilhamento de Lucros e Perdas). Isso significa dizer que o banco islâmico faz uma parceria com o cliente. Para ganhar dinheiro, sem cobrar juros, os bancos islâmicos usam sistemas de participação de capital. Isso significa que, se um banco emprestar dinheiro a uma empresa, o negócio paga o empréstimo sem juros, mas dá ao banco uma participação em seus lucros. Se a empresa não cumprir com o empréstimo ou não ganha lucros, o banco também não recebe nenhum lucro. 

Dessa forma, um islâmico investe no negócio de um agricultor, por exemplo, repartindo com ele os benefícios. Ele não concede um empréstimo em que se limita a receber juros, sem participar no negócio e envolve-se no investimento, como se se tratasse da própria empresa. Em circunstâncias excepcionais são permitidos juros quando existem ativos físicos cuja construção ou negociação produzir lucros. As obrigações islâmicas lastreadas por ativos físicos recebem o nome de sukuks. De fato, o singular desta palavra está na origem da palavra “cheque”, tão utilizada no mundo ocidental. Dito de outra forma: no mundo árabe, o dinheiro não produz dinheiro, apenas riqueza e o bem-estar da sociedade. 

O investimento na indústria transformadora de produtos proibidos (haram), como o tabaco, o álcool, armas de fogo, os alimentos derivados de porco, os cassinos, hotéis, entretenimento de adultos, etc. está vedado. Isto restringe em grande medida os investimentos dos sukuks. 

Por outro lado, não são permitidos a especulação e o jogo (maisir), incluindo a negociação (trading) especulativa e a troca de dívida por dinheiro (sem transferência de ativos tangíveis). Como é evidente, e para ser consistente com os princípios anteriores, a incerteza evitável (gharar) ocasionada pelos instrumentos derivativos não é bem-vinda nesse contexto. 

Finalmente, a negociação de dívida só é permitida ao preço nominal da sua emissão e nunca com o valor de mercado (mark-to-market). Se olharmos para a crise do subprime (ocorrida em 2008), perceberemos ainda que essa foi causada em grande parte por princípios que o mundo islâmico considera inaceitáveis, tais como a alavancagem desmedida, a especulação, os derivativos e os efeitos negativos das valorizações de mercado nos balanços das instituições. 

DISCUSSÃO SOBRE O TEMA AVANÇA

Existem alguns esforços há muitos anos no Brasil, no sentido de fomentar a discussão técnica e acadêmica sobre as finanças islâmicas. Podemos afirmar que o pilar fundamental se deu com a publicação do livro “A Banca Islâmica” (2004) da Sra. Ângela Martins, maior especialista em finanças islâmicas da América Latina e executiva do First Abu Dhabi Bank (FAB) no Brasil. 

Outras obras derivaram dessa primeira e em três áreas do conhecimento distintas, como a tese de doutorado do Professor Fabiano Jantalia, intitulada “Direito, Economia e Religião: As finanças islâmicas e seus arranjos alternativos de intermediação financeira”, defendida em 2016 na UNB na área do Direito; a tese de doutorado da Professora Andreia Lopes da Costa, intitulada “As possibilidades de relacionamento entre capitalismo e a economia islâmica a partir da perspectiva de Muhammad Baqir Assadr”, defendida na USP em 2016 na área de História Econômica, e a minha tese de doutorado defendida na PUC/SP em 2018 na área de Finanças, intitulada “Determinantes e consequências da responsabilidade social corporativa em bancos islâmicos do Conselho de Cooperação do Golfo”. 

Acredito que, semelhante ao que temos em outros países não islâmicos, como no Reino Unido, possamos difundir conhecimento sobre esse tema e nos tornar importante agente comercial neste tipo de arranjo financeiro. 

Escrito por Ahmed Sameer El Khatib, graduado em Ciências Contábeis (Universidade de São Paulo), Mestre em Ciências Contábeis e Atuariais (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e Doutor em Administração de Empresas (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Concluiu seu estágio pós-doutoral na Universidade de São Paulo e é Professor de Contabilidade Financeira, Finanças e Auditoria na Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado – FECAP.

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