O ENEM 2020, ainda com datas incertas devido a uma ação da Defensoria da União pedindo seu adiamento, terá entre 54 mil e 108 mil alunos infectados com o novo coronavírus habilitados a fazerem a prova no primeiro dia de exame. As contas que desmontaram isto são baseadas nos dados públicos oficiais sobre mortes decorrentes do novo coronavírus nas pesquisas sobre letalidade, incubação e transmissibilidade conhecidas.
Em agosto a OMS divulgou um estudo demonstrando que a letalidade real do novo coronavírus é de 0,6%. A taxa de letalidade oficial (no Brasil de cerca de 2,5 % hoje) na verdade sempre é bem maior do que a real porque a maioria dos casos do novo coronavírus não fazem testagem oficial ou nem fazem testagem, o que impede de aparecerem nas estatísticas. Com média móvel de mortes de cerca de 1000 pessoas por dia o Brasil hoje teria algo próximo de 170 mil infecções diárias (número bem superior aos 53.250 indicados como média diária de casos neste último domingo). Considerando que o vírus fica em média 12 dias em cada pessoa (média de 5 dias de incubação e mais média de 7 dias de transmissibilidade) teríamos hoje no Brasil cerca de 2 milhões de infectados, 0,95% da população.
Em uma conta bastante conservadora podemos considerar que entre os inscritos no ENEM temos o mesmo porcentual de infectados que no universo da população do Brasil. A conta, ou a opção por ela e não por outra, é bastante conservadora por sabermos que nestes últimos dias na verdade quem mais tem se exposto ao vírus são justamente os mais jovens, portanto é razoável supor que entre os mais novos o porcentual de infectados vai ser de mais de 0,95% no dia da provável primeira prova do ENEM.
Com mais de 5,6 milhões de inscritos para o exame, no dia 17, quando o INEP/MEC pretende aplicar a primeira prova do exame, mais de 54 mil dos inscritos vão estar com o novo coronavírus. 1 a cada 100 inscritos. Mais de 30 mil deles transmitindo. Se irão ou não ao exame é bem difícil saber. Eu suponho que faltarão quase que na mesma proporção da abstenção geral do exame (que certamente será, se realmente acontecer a prova agora, em torno de 50%).
Pouca gente conhece a realidade do exame nas menores cidades do país. Em 2018 o ENEM foi aplicado em só 550 cidades. Antes eram mais que 1700 cidades que tinham o exame. No dia do ENEM milhares e milhares de pessoas de aglomeram em tudo quanto tipo é de transporte para poder viajar da sua cidade até a cidade da prova. Várias e várias cidades costumam disponibilizar ônibus para que seus jovens possam se deslocar para a cidade onde farão a prova. Na maioria destes lugares são ônibus lotados que vão e voltam com os alunos. Em alguns lugares são embarcações que levam os alunos.
Boa parte destes saindo cedo de casa, 4 ou 5 horas antes do exame, e sem nenhum dinheiro para se alimentar antes, durante e depois da prova. Chegam em casa do a noite, umas 12 horas depois de terem saído.
As várias horas dentro da sala de aula, que são diferentes dos poucos minutos para votar, devem sim ser levadas em consideração, mas as horas antes e depois do exame também são preocupantes. E são preocupantes sobretudo nos municípios bem pequenos, aqueles onde que proporcionalmente as mortes pelo novo coronavírus mais aumentaram no segundo semestre e também aqueles que têm bem menor estrutura para tratar casos graves da infecção.
É bem verdade que existem entre estes jovens quem já tem se exposto ao novo coronavírus por vontade própria, ou até mesmo contra a vontade, por necessidade. Se expuseram/expõem em baladas, fluxos, nas campanhas das últimas eleições, no transporte público, em encontros entre amigos e/ou familiares, entre outros. Mas no caso do ENEM temos, diferente das outras situações, um elevado porcentual da sociedade que entendeu que o novo coronavírus é grave e tomou todas as providências para se isolar obrigado a se expor.
Agora o núcleo familiar que optou, e que pode, seguir as recomendações médicas e científicas, terá que submeter-se ao risco de contaminação por não estarmos trabalhando para uma solução alternativa que não prolifere o vírus, não acabe com as vagas de 2021 das federais e que não puna quem que, mesmo com as adversidades, conseguiu estudar para o ENEM em 2020. É importante citar que a taxa de letalidade considerada de 0,6% também é bem conservadora. Estudos no Brasil sugerem que taxa de letalidade é menor que 3% pelo menos por aqui. Se este for o dado considerado a cada 50 inscritos no ENEM 1 estará contaminado no dia da provável primeira prova. Mais do que 100 mil pessoas, e mais do que a metade delas transmitindo.
0 Educador Mateus Prado é especialista em ENEM. Foi fundador e presidente do Instituto Henfil, editor da Revista Glocal, colunista do Estadão, do IG, do DGABC e de vários outros veículos de comunicação. Cursou Sociologia na USP e Medicina na UFRJ e é graduado em Políticas Públicas pela USP.
Mateus Prado autorizou a publicação parcial ou total deste artigo em 14/01/2021.